Doidivana

blog da escritora Ivana Arruda Leite


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AZEITONA 19

Outro dia eu perguntei pro Marçal Aquino sobre o livro do anão que ele estava escrevendo e ele me falou que tinha jogado no lixo. “É mesmo? Por quê?”.  “Eu sabia demais da história, tinha contado pra muita gente, as pessoas me cobravam, até no jornal saiu que eu tava escrevendo um livro sobre um anão”. O Marçal funciona assim: se ele desvenda a história antes da escrita, ele perde o tesão e abandona o livro. O que o motiva a continuar é a curiosidade pela história, pelos personagens. Comigo acontece o oposto. Nos dois sentidos, tanto em relação a saber o final da história, como quanto às cobranças das pessoas. Quanto mais as pessoas me cobram e me perguntam sobre o que estou escrevendo, mais eu me sinto comprometida e “obrigada” a ir em frente. Jamais tocaria um projeto literário em sigilo. É como aquela velha piada de comer a … (uma celebridade gostosa qualquer, estou sem idéia) e não contar pra ninguém. Cadê a graça? (*) Quanto a saber a trama antes de escrevê-la, no primeiro mês de escrita, a história do Hotel estava pronta. Os outros quatro anos eu passei colocando coisas, tirando, mudando, retomando, reescrevendo milhares de vezes o mesmo trecho. Claro que muita coisa foi surgindo no meio do caminho, principalmente sobre a vida pregressa dos personagens. Mas o começo, o meio e o fim eu sabia qual era. Meu tesão começa quando eu falo: pronto, é essa a história que eu quero contar. Agora só falta escrevê-la.

(*) Eu já escrevi uma história em sigilo, mas por obrigação contratual.


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AZEITONA 18

“Todo escritor tem a lembrança de uma boa professora de português por trás” – ups – eu falei essa frase na entrevista que dei pra Mona Dorff.

E agora com licença que eu tô indo com a minha mãe comprar a roupa que usarei no lançamento. Ela vai me dar de presente. 58 anos? Não, 15.


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AZEITONA 16

Além do pai de santo, o romance ainda tem uma stripper de boate privê, um figurinista de noivas da rua São Caetano, um bancário, uma auxiliar de enfermagem, um alto funcionário da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, uma dona de boteco que vira dona de hotel, um pianista de boate que usa paletó de veludo bordô.
No meio de tantos adultos, uma única criança: Ritinha, que mora numa cidade do interior mas está hospedada no Hotel Novo Mundo porque vai ser operada do coração no Hospital das Clínicas.


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AZEITONA 14

Pra não falar que no livro não tem nem um personagem inspirado em alguém da vida real, tem um: o pai de santo. Pai Lauro é uma homenagem que eu faço a um querido pai de santo que conheci nos anos 80 e que, infelizmente, já se foi pra junto de Oxalá. Ele chamava-se Doda. Eu ainda estava na USP quando fui pela primeira vez ao seu terreiro. Ele era o pai de santo dos professores das Ciências Sociais. Não tinha um mestre ou doutor que não tivesse ido ao Doda pra resolver algum problema (de saúde, financeiro, dificuldades com as teses, câncer, filhos drogados, etc). De dia, eles professavam a mais douta ciência (eu tô falando de nomões mesmo, doutores com livros publicados, etc); de noite, iam ao Piqueri bater cabeça e cumprir suas obrigações com os orixás. Tinha a turma dos meros frequentadores (como eu) que só ia nas festas, jogar búzios e tomar banho de ervas e tinha os que faziam parte da hierarquia do terreiro. Estes eram ogans e equedes e cumpriam religiosamente com as obrigações do cargo. Eu fiquei tão intrigada com essa história que resolvi fazer minha dissertação de mestrado sobre esses caras. “A oração dos doutores”, chamava-se. Tirei 10 com distinção e louvor. Está lá na biblioteca da Sociais pra quem quiser conferir. Nessa época, ser escritora me parecia um sonho impossivel. Pra ocupar meus neurônios, eu me tornei mestre em Sociologia, mas juro que isso, hoje, só tem valor arqueológico. Restou viva a boa lembrança do Doda, que resolveu aparecer no meu romance. Foi ele quem me disse que eu era filha de Iemanjá. A minha Renata também é. Achei mais fácil assim. Hoje quem atende os doutores da USP é o pai Armando, ele também doutor em Sociologia, um doce de pessoa. De vez em quando eu vou lá tomar uns banhos e tirar umas zigueziras. Faz um bem danado. Axé. Odoiá.


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AZEITONA 13

Eu trabalhei na Caixa Econômica Federal de 1977 a 1986. Primeiro na Praça da Sé, depois na avenida Paulista, naquele prédio arquifotografado. Passei por diversos andares incluindo o térreo, onde fui caixa. Sim, senhores, eu já fui caixa de banco. E nunca perdi um tostão! Nesta época eu passava os meus dias atrás de um guichê lamentando as recusas que eu recebia das editoras. Meu único prazer na vida era escrever. Volta e meia eu espiralava um punhado de contos e mandava pra dez, doze editoras do Brasil inteiro. No mês seguinte (ou nunca) começavam a chegar as tais cartinhas. “Seu perfil não se encaixa na nossa editora…”. Um  dos raros momentos de alegria era quando o Ignácio de Loyolla Brandão chegava. Ele morava ali perto e era cliente da agência. Eu fazia questão de atendê-lo. “Oi, gosto muito dos seus livros, eu também escrevo…” – aquele papinho que todo escritor conhece bem. O tempo passava e eu continuava no meu papinho idiota, “oi, gosto muito dos seus livros… Posso te mostrar o que eu escrevo?”. Ele até me deu o endereço, eu até deixei uma brochura na portaria da casa dele, mas cadê dele me responder. Never. Essas coisas são assim mesmo, hoje eu entendo. Em 86 eu saí da Caixa, em 2001 eu finalmente fui publicada e comecei a encontrar o Ignácio por aí, nos eventos, nos lançamentos. Ele sempre foi muito simpático comigo, acolhedor. Agora bebemos cerveja juntos e conversamos de igual pra igual, com todo respeito que este grande escritor sempre há de merecer. Por isso, quando o editor me perguntou quem eu queria que fizesse a orelha do meu primeiro romance, eu falei na hora: o Ignácio de Loyolla Brandão. Eles acharam ótimo e mandaram o livro pra ele. Se meu coração não fosse forte eu teria morrido ao ler o que ele me escreveu. Olha como o cara começou:

Conheço Ivana Arruda Leite há não sei quantos anos, e ela me parece sempre a mesma. Sempre não. Quando a conheci, ela trabalhava na Caixa Econômica Federal, na avenida Paulista, onde eu tinha conta. Ela era uma figura tímida atrás do balcão e me olhava através dos óculos, com um jeito irônico. A timidez ela perdeu, a ironia se acentuou. Na vida e na literatura. Basta sentar-se com ela na me­sa da Mercearia São Pedro, na Vila Ma­dale­na, São Paulo, um de seus redutos e de toda essa nova geração que escreve. Da nova e da intermediária. E de pessoas de ge­rações anteriores, como eu. Ivana conhece tudo e todos, chama, agrada, ri, apresenta, discute literatura, sabe fofo­cas, fala de livros lidos.

Esse é só o primeiro parágrafo! Vocês nem imaginam o que ele falou do meu Hotel!

Às vezes, a vida demora pra ficar bela.


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AZEITONA 12

Eu não sou escritora de pesquisa. Falou em pesquisa eu saio correndo. Pesquisa pra mim acabou na universidade. Hoje minha matéria prima é a imaginação. Tem escritor que para escrever um livro que se passa num hotel na região da Luz até se mudaria pra lá pra ter uma vivência que o aproximasse dos seus personagens; outros iriam pra lá de moleskin em punho e encheriam páginas e páginas com anotações; outros entrevistariam moradores da região, etc. Eu escrevo meus livros do meu quarto, sentada no meu computador, olhando o universo que crio pela janela da imaginação. Mas um dia eu me invoquei e falei: eu vou até lá. Peguei o ônibus Estação da Luz, desci na Praça Princesa Isabel, olhei a estátua do Duque de Caxias por onde a Renata passa tantas vezes, lembrei de como eu achava essa estátua imensa quando era criança e de como ela continua imensa até hoje (coloquei isso no livro), fui até a rua Helvétia, olhei à esquerda, vi um muro alto tomando um quarteirão, pensei: aqui deve ser um colégio. E assim ficou. Nunca fui lá conferir. Virei à direita e fui andando apressada. Era uma manhã de sol. As putas estavam no lugar de sempre, os bêbados e mendigos, idem. Os policiais faziam a ronda garantindo que eu não corria grande perigo. Mesmo assim eu estava desconfortável, aflita. Passei por muitos hotéis e pensões e pensei: tudo bem, é um desses. Segui adiante. Os sacos de lixo tomavam as calçadas, o caminhão logo passaria pra pegá-los. Os mendigos e os cachorros disputavam o pouco de útil que ainda restava ali (isso também acabou indo pro livro). Na próxima esquina, virei de novo à direita, fui até a avenida Rio Branco e entrei no primeiro Pinheiros que passou. Vinte minutos cronometrados foi o que durou a única pesquisa para fins literários que fiz na vida.


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AZEITONA 11

Pra encerrar o assunto dos nomes. A dona do Hotel se chama Genésia e é uma mulata gorda e bem humorada que usa uns vestidos com estampas gigantescas. Um jardim ambulante. Seu marido, Leão, é um homem miúdo, abatido, circunspecto que fuma um cigarro atrás do outro. Leão tem lá suas vaidades, uma delas é esconder a careca com uma peruca meio alaranjada que está sempre torta na cabeça. A mulata da escola de samba e o mico-leão dourado formam um casal improvável e se dão muito bem. Genésia vem de gênesis, claro. No Hotel Novo Mundo, sob os cuidados de Genésia, Renata começará tudo de novo. E Leão vem de um Leão que eu conheci ainda menina. Uma prima da minha mãe, tida como solteirona irrecuperável, um dia apareceu dizendo que ia se casar. Casar? Você? Como assim? Todo mundo queria conhecer o Romeu da Julieta, era este o seu nome. Como ele se chama? Leão, ela respondeu envaidecida. Leão? Pois é, valeu a pena esperar. Traga ele aqui pra jantar. À noite, Julieta e Leão chegaram de braço dado, às oito em ponto. O Leão era pequeno para o nome que carregava. Um homem miúdo, de óculos, professor primário. Susto mesmo levamos quando Leão abriu a boca. Um miado. O Leão tinha uma voz fininha, fininha. As crianças saíram pra rir lá fora. Os adultos se seguraram.