Doidivana

blog da escritora Ivana Arruda Leite

FODA-SE MEU BEM

2 comentários

Esperar pela morte de Paulo, vê-lo nesta cama sem chance alguma está sendo terrível pra mim. Quando cochilo tenho pesadelos horríveis e acordo com o coração disparado. Paulo está em coma há dias, não dá mais sinal de vida. Quantas vezes desejei que ele morresse de morte sofrida, destas bem doloridas, mas eis que quando chega a hora, quem mais sofre sou eu. Qual de nós merecia castigo tão grande?
Paulo sempre bebeu além da conta. Me batia, me xingava, uma vez furou meu pescoço com canivete. Quando engravidei, jurou mudar de vida, procurar emprego, qual. Com barrigão de oito meses, eu tinha de sair correndo atrás da ajuda dos vizinhos. Um dia não voltei mais. Minha filha nasceu linda e forte. Rubens me ajudou a criá-la como filha verdadeira. Mas era o Paulo o mendigo que veio me pedir esmola no farol. Ficamos ambos paralisados. Fui tomada por um tremor que sacudia meu corpo inteiro. Estacionei o carro e pedi que entrasse. Só então pronunciei seu nome. Bem baixinho ele pronunciou o meu. Falar o quê? Perguntar o quê?
– Me dê um trocado, uma média com pão com manteiga, uma pinga, o que você quiser.
Tenho coisa melhor pra te dar: uma filha linda, inteligente, terceiro ano de medicina, um sucesso entre os rapazes, mas Paulo nem perguntou.
– Você está com fome?
– Eu estou sempre com fome.
Os mistos quentes e o copo de café de leite que lhe comprei ele devorou quase sem respirar. Depois me pediu um cigarro.
– Faz tempo que não fumo um cigarro desses.
Dei-lhe o maço que ele guardou na mochila de plástico cor-de-rosa que trazia nos ombros. De lá tirou um papel, um toco de lápis e anotou meu telefone. Depois abriu a porta e foi andando até sumir. Liguei o carro e fui na direção oposta. Passei o dia deitada, imóvel, olhando pro teto. Só mais tarde consegui chorar. Já nem pensava mais em Paulo quando veio o telefonema.
– Tem aqui um mendigo chamando pela senhora.
Encontrei-o deitado sobre uma maca no meio do corredor. Apertei-lhe a mão e prometi não deixá-lo nunca mais.
Tento reconhecê-lo neste homem de barba feita e banho tomado que morre aos poucos ao meu lado, mas não consigo. De vez em quando chego perto pra ver se ele ainda respira. Em casa pensam que estou na praia, preferi não contar nada a ninguém. Uma única vez ele me perguntou sobre o filho que eu esperava. Disse-lhe que abortei.

(conto publicado no livro Falo de Mulher)

Autor: Doidivana

escritora de forno e fogão

2 thoughts on “FODA-SE MEU BEM

  1. Oi Ivana,

    Me emocionei com esse conto. De certa forma me pareceu real.

    Beijos!

    (Estamos curtindo um verãozão em Graz! 😉 )

  2. O melhor conto seu que já li. Muito, muito bom MESMO. Desculpa, mas não tenho outra palavra pro final a não ser FODA. =)

    =*

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